domingo, 24 de abril de 2011

Por que salvar uma língua

Ta graih aym ort

Ou por que salvar uma língua

por Ricardo Sangiovanni

Diz a Bíblia que as diferentes línguas surgiram da pretensão humana que, na ânsia de atingir o céu, construiu a Torre de Babel. A construção ficou tão alta e realizada de forma tão lenta que, ao longo das décadas, Deus aproveitou para fazer com que os operários que trabalhavam em cima passassem a falar um idioma diferente dos que ficavam na base da obra. Com o tempo, todo mundo se desentendeu, a torre (como a Cidade da Música, no Rio) não foi adiante e, no lugar da língua única, apreendida no Jardim do Éden, surgiu a babel idiomática.

Agora, 300 estudantes de 137 países, quase todos alunos da Universidade de Sheffield, no Reino Unido, reviveram a babel bíblica, ao menos no plano linguístico. Durante o Festival Internacional de Línguas – o primeiro do gênero na Grã-Bretanha –, ofereceram-se, por dois dias, aulas introdutórias, de uma hora cada, de 150 línguas diversas. Por 2 libras, qualquer um podia assistir a quantas apresentações aguentasse no dia. De mandarim a iorubá. De galês a gujaráti.

O patrono da ideia foi um estudante polonês que cursa chinês e alemão na universidade. Ele se apresenta como Max, e não diz o sobrenome de jeito nenhum. Expressões usadas em seu discurso na abertura – “Estamos todos unidos com um objetivo comum” ou “Somos uma orquestra em que cada um dá sua contribuição” – e a própria organização do festival deixaram claro que seu propósito é realmente não discriminar língua alguma. Tanto que um dos professores chamados por Max para sua babel foi o escritor Christopher Lewin, nascido e criado na Ilha de Man, entre o Reino Unido e a Irlanda. Coube a ele ensinar o bê-a-bá do idioma da ilha, o gaélico manês – ou simplesmente manx.

Detrás de aros de acrílico escuro e lentes de raio três vezes maior que o de seu olho, do oleoso cabelo preto caído na testa e de uma barba cheia e esfiapada que lhe dá ares de profeta, Christopher Lewin contou que só umas 1 600 pessoas, 2% dos habitantes da ilha, sabem manx. Ainda assim, como segunda língua, depois do inglês. Desses, algumas centenas – que ele reconhece na rua – têm fluência.

Originada do celta – um ramo dos idiomas indo-europeus, como o latino e o germânico –, o manx era a língua mais falada na ilha até o século XIX, quando a expansão industrial inglesa tirou a ilha do isolamento. Em 1974, restava como a língua materna de apenas um habitante da ilha.
E desde a morte do pescador Ned Maddrell, naquele ano, não era a de mais nenhum. Mas há sempre aqueles que querem preservar. E, em 1991, surgiu a primeira escola de manx. Desde então, um punhado de crianças e adultos jovens o estuda. Seu lema é Gyn chengey, gyn cheer – ou, para os ignorantes em manx, “Sem língua, sem país”.

Christopher Lewin, de 19 anos, é um dos que querem preservar o idioma. Ele reconhece que sua língua é cheia de contradições e anomalias. Algumas delas revelam, ao mesmo tempo, a riqueza e o anacronismo linguístico em relação ao resto do Ocidente. Em manx quase não se usam pronomes pessoais do caso reto (eu, tu, ele). Bem mais importantes são os do caso oblíquo (mim, te, ti). O resultado é que sem tantos tipos de sujeito, a declinação verbal varia pouco. Curiosa idiossincrasia: com séculos de vantagem em relação à linguística moderna, o manx já destronava o indivíduo de sua função de protagonista da língua – e, por conseguinte, do pensamento.

Talvez more nessa não-preponderância do sujeito a origem de outra peculiaridade do idioma: não existem os verbos “ter” ou “saber” – dois pilares das línguas (e da vida) no Ocidente. Na língua da ilha, eles são desnecessários. Se um falante de manx, incomodado com os latidos de um cão desconhecido, for perguntar ao novo dono da casa ao lado “Você tem um cachorro?”, dirá: Vel moddey ayd? Ao pé da letra, terá dito: “Há um cachorro em ti?” Ao que o incômodo vizinho responderá: Ta moddey aym – “Há um cachorro em mim.” Terá começado uma querela, mas os dois não terão usado o verbo “ter”.

Em manx, o protagonista do pensamento é o objeto. Expressar-se requer pensar em si mesmo como coadjuvante. “Estou com fome” não existe. O certo é Ta accrys orrym – “Há fome em mim.” “Estou com raiva” é Ta coree orrym – “Há raiva em mim.” “Eu sei isso” é Ta fys aym er – “Há conhecimento em mim sobre isso.”

O manx lembra algumas ficções de Jorge Luis Borges. Na língua da ilha, por exemplo, não há como responder simplesmente “sim” ou “não” a questões simples. Então, quem pergunta “Você deu dinheiro a ele?” diz Dug oo argid da? (Ao pé da letra, “Dinheiraste nele?”) E precisa do verbo para entender a resposta: “Sim” é Hug (“Dinheirei”); “Não” é Cha dug (“Não dinheirei”).

Curiosa também é a contagem, em múltiplos de vinte. Algo como o quatre-vingt francês, só que mais complicado: “Cinco” é queig; “dez” é jeih; “quinze” é queig-jeig; “vinte” é feed. Mas como dizer, em manx, “quinze homens”? Queig deiney jeig – “cinco homens dez”. “Trinta e cinco homens”? Queig deiney jeig as feed – “cinco homens dez e vinte”. “Noventa e cinco homens”? Kiare feed dooiney as queig-jeig – “quatro vinte homens e quinze”.

Foi difícil também para Christopher Lewin. Quando começou a estudar a língua, aos 7 anos, por imposição familiar, achava perda de tempo. Seguiu adiante obrigado pelo pai e as coisas melhoraram quando aprendeu a gramática e passou a juntar palavras – viu que podia falar qualquer coisa. Foi juntando e, em 2007, completou 40 mil e lançou um livro: Jough-laanee Aegid as Skeealyn Elley [O Elixir da Juventude e Outras Histórias], três contos dele e duas traduções de Hans Christian Andersen. Em 2010, 80 mil palavras depois, publicou Droghad Ny Seihil [A Ponte de Palavras], a história de Mollie, uma garotinha da ilha que viaja para um universo paralelo, onde escapa dos problemas de casa. Lá, todos falam manx.

No mundo real é diferente. Em fevereiro de 2009, a Unesco, o departamento das Nações Unidas para a educação, publicou em seu Atlas of the World’s Languages in Danger [Atlas de Idiomas em Risco no Mundo] que o manx era uma língua extinta. Crianças da Bunscoill Ghaelgagh, a escola de manx em St. John’s, contra-atacaram mandando uma carta nessa língua a Koïchiro Matsuura, diretor-geral da entidade. Diziam: “Se nossa língua está extinta, então em que língua estou escrevendo?” Seis meses depois, a Unesco voltou atrás – hoje classifica o idioma como “criticamente ameaçado”.

Lewin mudou-se há um ano para Edimburgo. Cultiva o manx e, junto com o idioma, uma dúvida atroz: “Será que falo uma língua-zumbi?” Resigna-se então a conversar em manx com sua torradeira, e a ler e reler a Bíblia, um dos poucos livros escritos na língua. Ele encerrou a aula na babel de Sheffield ensinando a dizer em manx a frase mais anotada nas lições do festival: “Eu te amo” – Ta graih aym ort. Literalmente: “Há amor em mim por ti.” Pouca gente pensa no amor assim, mas há sentido e beleza na formulação. Outra prova de que nenhuma língua é uma ilha.

Informações: http://tinyurl.com/428mbqy via @brumelianebrum e @anna_saramago

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