domingo, 13 de setembro de 2009

Conhecendo Salvador pelos olhos de Gilberto Gil




"Faz um baita sol em Salvador e contamos com um desses jipões último tipo pra nos levar aos lugares de interesse - e a capital baiana tem muitos. Mas não há por que ficar aqui enrolando: o melhor da história é que no banco do carona, dando as coordenadas a seu motorista, está Gilberto Gil. Há alguns meses ele havia aceitado nossa ideia de passear em sua cidade natal com régua e compasso, fazendo coisas que costuma fazer quando está por lá e visitando lugares que lhe marcaram a infância e a juventude. Suas tranças amarradas pra trás e o amarelo-ovo do carro até que nos distinguem nas ruas, mas, como todo mundo, estamos reféns do engarrafamento - e a capital baiana tem muitos. Gil acha natural. "É o modelo que está sendo implantado em todas as cidades do mundo. Populações migrantes, concentração de muita gente, cidade inchando, verticalização, asfalto, alimentação, shopping centers, supermercados... É a civilização contemporânea. A gente tem um pouco essa ilusão de que a consciência humana destacada do resto pode acabar encontrando fórmulas e tal, mas a gente anda junto com todo o resto."
Gil mora no
Rio faz tempo, mas mantém sempre pronta a casa do Rio Vermelho, em Salvador. Pronta mesmo: pode aparecer sem aviso a qualquer hora do dia ou da noite e vai encontrar a cama feitinha e perfumada, a geladeira cheia, quem sabe até umas delícias saindo do forno. Um dos quartos foi adaptado, tem as paredes forradas como em estúdios profissionais, e assim ele pode tocar violão e compor até amanhecer se der na telha. Enfim, a cidade é um lugar que lhe tem servido quando precisa descansar e curtir - e era bem isso o que andava fazendo quando nos encontramos pra esse rolê, repleto de filosofadas, emoções e reticências.
A primeira parada é a Praia do Porto da Barra, um sorriso de areia com uma fortaleza em cada ponta - a de Santa Maria e a de São Diogo. "É onde a história da cidade começa", diz Gil. "Tomé de Souza aportou aqui, foi recebido por Diogo Álvares, o Caramuru." Nos anos de 1970, essa enseada da Baía de Todos os Santos foi também lugar de hippies e simpatizantes da contracultura, o que ainda lhe atribui um certo charme. "E é lindo... O sol se põe sobre o mar." Na barraca de coco, o negão de cabelo rasta diz ser velho amigo de Gil. Ora, quase todo mundo na Bahia afirma ser amigo dele ou de Caetano, ou amigo de um amigo ou vizinho de um amigo de um amigo. E quase sempre é verdade. "Meu filho ainda era pequeno, tinha problemas sérios de saúde", vai explicando Marco Polo, o vendedor de coco - que não quis cobrar. "Com quem ele ia pro Rio, sempre que precisava? Com o Gil. Levava o menino pela mão, como se fosse filho dele!"
Ali no balcão, já atraindo um pequeno séquito de admiradores e curiosos, nosso cicerone de luxo comenta que a cidade é turística há muito tempo. "A Igreja do Senhor do Bonfim, esse forte aí da Barra e tudo já eram os cartões-postais do Brasil, já atraíam alguns navios turísticos. E era uma cidade balneária, cidade de veraneio, de verão, já era uma referência." Gil nasceu em Salvador e, com alguns dias de vida, foi morar em Ituaçu, a pouco mais de 500 quilômetros. O pai era um dos dois médicos da cidade; a mãe, professora respeitada; e ali no sertão ele viveu toda a doçura da infância. "Éramos uma família privilegiada, com muita influência geral na vida daquela pequena sociedade." Ele tinha quase 10 anos quando veio estudar em Salvador, sob os cuidados das tias. "A gente vai passar lá no (bairro) Santo Antônio!"
Gil conhece a cidade como a palma branquinha da mão. E tem conversa boa, que num instante põe a gente no Gantois, descendo a calçada larga que leva ao terreiro de Mãe Menininha. "Nós vamos ficar aqui, na frente. Não quero necessariamente entrar na casa." É só uma paradinha para fotos, e logo estamos de novo no carro, passando perto do Solar do Unhão. "É onde funciona o Museu de Arte Moderna. Lá, o Forte de São Marcelo. Ali na frente, o Elevador..."
Com certa expectativa, chegamos ao Mercado Modelo. "Antes era a sede da alfândega. Eu trabalhava aqui!" Recém-formado em administração de empresas, ele começou assim, fazendo fiscalização. "Abria mala, geladeira (de isopor), mercadorias em geral. Fiz concurso em 1962 e aí, dois anos depois, fui nomeado." Mas logo, como se sabe, se mandou pra São Paulo feliz da vida. "Não, não! Eu ia com a mão no coração, cheio de expectativa, só...a coisa da música! Um sentimento de eclosão, um algo a ser feito." E assim a Bahia perdeu um fiscal de alfândega, esse mesmo que agora caminha na muvuca do mercado, sob uma artilharia de retratos celulares e solicitado por braços que vêm não se sabe de onde. Ele tem a manha. Vai dando um tanto de atenção a cada um, contudo não interrompe a serena caminhada, de maneira que está sempre no limite do bolo de gente, nunca no meio. Um bigodudo se aproxima:
- Gil, eu também sou do Santo Antônio! Eu morei ali, era pequeno, ficava vendo você tocar violão com o Luiz Nazeno!
Gil sorri, aperta os olhos na direção do homem. "Você tem um negócio aqui?" Sim, Abdala Abib Neto é comerciante, filho de libaneses, e está prestes a descobrir se o ex-vizinho lhe reservou ao menos uma quitinete no imenso condomínio da memória. Pode até ser. "Eu não gosto nem tenho talento, não sou bom memorialista", diz Gil. "Pessoas, em geral, eu lembro, já fatos... Sou muito tendente a manter a respiração do real muito próxima do meu próprio corpo. Não tenho uma mente ambiciosa." As músicas, claro, o ajudam a resgatar certas passagens. "Onde eu estava, o que era, o que inspirou, a locação, o entorno, a fonte de onde a música nasce, enfim. Mas eu não fico muito preocupado com a memória. A minha obra é a minha memória. Eu não tenho muito o que pensar. Eu fui construindo a minha memória. Ela tá aí, ela já é monumento, não tenho muito o que ficar pensando. O contrário, o que eu mantenho como memória é aquilo que não tá na obra, que é o afetivo mais próximo, é a pessoa simples que eu encontrei, os colegas, o colégio, essas coisas eu guardo." Abdala, por exemplo, foi preservado por cerca de 50 anos, ainda que de calças curtas e sem bigode, porque agora volta pra loja flanando, orgulhoso do abraço que ganhou do Gil.
Nosso destino seguinte é a Praia da Ribeira e o guia, dedicado, vai comentando a paisagem pelo caminho. "Foi onde o Raul Seixas começou", ele assinala quando passamos pela fachada art déco do Cine Roma, o palco do rock na Bahia durante os anos 60 e 70 (hoje abriga uma igreja). "Ele fazia as apresentações dele ali, já tinha uma pequena comunidade de seguidores. Eu o conheci na Graça, quando saí da prisão, 1969." E a amizade mal decolou, porque meses depois Gil se exilou na Europa. Mas agora basta avistar o espelho-d'água para que suas lembranças tragam as competições de remo, tradição nas águas tranquilas da baía. "Aqui também tinha o famoso time de basquete do (Clube de Regatas) Itapagipe. Jogava bem, ganhava dos times do sul. E pousava hidroavião também, aqui era o porto e hidroporto."
Logo ali, do outro lado da rua, a Sorveteria da Ribeira, mais um gosto de Gil em Salvador. E de um monte de gente também. Assim como no mercado, a chegada do artista e ex-ministro provoca uma comoção. Ele encosta no balcão e pede uma casquinha de tapioca. Duas bolas. Vem uma moça, conta que é produtora cultural, fala de uma mostra de cinema, que o projeto está quase pronto, pede a colaboração dele. Um velhinho aproveita a demora no atendimento e inicia um monólogo com o cliente ilustre, mas falando de perto e baixinho, muito reservadamente - devia ser um segredo. Um grupo de senhoras comemora o aniversário da mais velha nas mesinhas lá fora. Uma delas puxa assunto e, sem saber, colabora pra teoria de que todo baiano tem alguma coisa a ver com Gil:
- Conheço a Gildina; eu trabalhava na faculdade quando ela estudava odontologia.
Gildina é a única irmã, veio com ele do interior pra morar com tia Margarida e tia Dolores, em 1951. "Tia Dolores era negociante, tinha um armarinho na Avenida 7. Foi lá que eu assisti aos carnavais. O primeiro trio elétrico que eu vi foi lá, na casa dela!" Engraçado, porque, mesmo tão baiano, ele tem poucos parentes na Bahia. "A maioria está em Belo Horizonte. Alguns no Rio, alguns em Belo Horizonte. As ramificações da minha família não são muito grandes nem pelo lado da mãe, nem pelo lado do pai. Está começando a se expandir a partir de agora, comigo. São sete filhos e sete netos."
Finalmente, alcançamos o Santo Antônio Além do Carmo, nome com que o bairro se tornou conhecido (fica logo depois do Carmo, a uma caminhada do Pelourinho). Gil se empolga. "Aqui é o Santo Antônio, Largo do Santo Antônio. Esse é o Forte da Capoeira." O monumento começou a ser construído no século 17, já serviu como casa de detenção e hoje, todo reformado, é um centro de cultura popular. "Eu brincava muito aqui na frente." Não demora e começa a aparecer gente, ou melhor, conhecidos de Gil. Uma das funcionárias chega beijando, é do mesmo terreiro de sua mulher, Flora. O mestre Curió interrompe a roda de capoeira lá dentro e traz os alunos até o pátio para uma cantoria em homenagem ao emérito visitante.
Da casa onde morou, na Rua dos Marchantes, restou apenas a fachada, como se fosse um cenário. A visão do lugar, que apesar dos carros zanzando continua bucólico, desperta nele uma profusão de lembranças e nomes. "Valdo, Zélia, Amor, Mário... Mário era o menino da maconha! Ali morava o açougueiro, seu Gaudêncio. Aqui tinha um sapateiro, Cândido. Ali tinha a quitanda do Carvalho, bem ali. Aqui era um bar de um galego, o Manolo. Ali naquela casa verde fi cava a professora de piano da minha irmã, professora Mariah. Ali ficava o Moinho da Bahia, famoso..." As reticências servem pra fisgar um refrão: "O Moinho da Bahia queimou, quei-queimou, deixa queimar..."
Caminhando, alcançamos o Plano Inclinado Pilar, o elevador que liga o comércio atrás do Trapiche, na cidade baixa, à área da Cruz do Paschoal, no Santo Antônio. "Isso aí era a única ligação de transporte direto que havia com a cidade baixa, diretamente com o porto. Então, aqui era um bairro muito frequentado por marinheiros militares e civis. Os trabalhadores também, todo mundo que morava na Liberdade, todos esses bairros daqui, eles vinham de lotação ou de ônibus, saltavam aqui pra pegar o elevador pra ir pro trabalho. Era ponto efervescente da cidade." Quando era moleque, Beto, como era chamado, não saía dali, desafiando os encarregados das máquinas. "A gente parava ali no meio!" Os olhos de Gil brilham, ele parece absorvido pelas recordações de menino. O operador que hoje está lá não admite brincadeiras nos trilhos. "Não, não pode", responde com autoridade. Gil retruca: "Ah, no meu tempo..."
Não demora e esbarramos nas origens de uma antiga canção. "A Ione morava ali... Minha primeira música, Felicidade Vem Depois, foi pra ela. (Cantarola) 'Se você disser que ainda me quer, amor/Eu vou correndo lhe abraçar'." E daí ele emenda um mapa simplifi cado da região. "E aqui é a Ladeira do Akidabã. Pra lá seguia pro Barbalho, pra Liberdade, pro Curuzu, Soledade etc. Aqui descia pra Baixa de Quintas, Baixa do Sapateiro... E logo lá em frente era o Carmo, o Convento do Carmo, que hoje é hotel. No Convento do Carmo a gente assistia à missa, jogava bola..."
Nosso roteiro acaba com dois programas noturnos. Primeiro, um jantar no restaurante Yemanjá, um dos preferidos de Gil. Depois, uma jornada até o Teatro Castro Alves, pra ver Milton Nascimento e o Jobim Trio. Tratado como um paxá, o guia que arranjamos chega em cima da hora, mas tem vaga na garagem e poltrona no meio da plateia esperando por ele."

Fonte: Twitter Turismo Bahia

Nossa Opinião: Roteiro cheio de encanto, história e poesia!! Amo Gilberto Gil. Possui uma clareza quando fala sobre qualquer assunto e o mais bonito é a tranquilidade em SER, sem a manor vaidade e assim ele fala lindamente!

4 comentários:

bernadete disse...

Eu só conheci um pouco Salvador quando tive um cartão clonado e saí pela cidade inteira atrás dos ladrões... aí sim, pude ver de fato como se organiza (ou se desorganiza, nunca sei dizer ao certo).. Muito legal o roteiro do Gil

Marcos disse...

"andar com Fé eu vou...que a Fé não costuma faiá."
Marcos

Alex disse...

Tenho uma tia, amiga de minha mãe que conhece Gil... :D Um salve pra Gilberto Gil!!!!!!!

Gilson Mangarat disse...

Meu pai, Waldelino José Lopes da Cunha, mais conhecido como "Leninho" quando criança foi vizinho de Gilberto Gil na Rua dos Marchantes. Meu pai morava no Nº 13 e Gil no Nº 11. Conversavam muito quando criança e brincavam bastante como os outros meninos da rua. Meu pai ainda guarda na memória vários episódios daquela época de menino. Hoje, como o Gilberto, mora no Rio de Janeiro. Infelizmente a décadas que não se vêem. O último encontro foi num aeroporto, muito rapidamente..