sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

Lavagem do Bonfim, festa do povo da Bahia, Por Emiliano José



Eu, que me tornei baiano por adoção, cheguei a esta Cidade, à querida cidade de Salvador, pouquíssimos dias antes da Lavagem do Bonfim. O primeiro contato, minha iniciação em Salvador, já foi com a festa.

Terra esta, a Bahia, muito diferente de São Paulo, de onde vinha.

De lá pra cá, de 1970 até hoje, salvo o tempo em que a ditadura me deixou preso, sempre dei um jeito de caminhar com a Lavagem.

Desde o primeiro momento, fiquei intrigado com a idéia de Lavagem.

De onde viria o nome?

E por que Salvador tinha essa mania de a tudo lavar?

Lavagem daqui, lavagem dali, lavagem do beco, lavagem da escada, lavagem de tudo.

Tenho manias de leituras. Paixão por leitura.

Ordep Serra, intelectual de mão cheia, antropólogo, profundamente ligado ao candomblé, escreveu há coisa de 10 anos um livro de pouco menos de 200 páginas denominado Rumores da Festa – o Sagrado e o Profano na Bahia – já em segunda edição, esta do ano passado.

Neste livro, entre tantas festas de largo e carnavais, Ordep trata com atenção da Lavagem do Bonfim.

E é bom que andemos pela história, que compreendamos de onde surgem as nossas festas.

O rito da Lavagem do Bonfim é encabeçado, protagonizado pelas baianas, por mulheres negras, sacerdotisas do candomblé, mães de santo vestidas a caráter, que realizam o que poderíamos chamar de uma procissão, com os vasos de água de cheiro à cabeça.

Essa procissão, como todos sabemos, inicia-se aos pés da Igreja da Conceição, acompanhada por milhares de pessoas do nosso povo, que ao longo do caminho, conversa, canta, bebe.

Da procissão, participam carroças, cavaleiros, caminhões fantasiados. Tudo de alegre acontece nessa festa sagrada e profana. Todos vão seguindo as baianas, não tão organizadamente, como acontece em qualquer grande manifestação popular.

Há um quê fortíssimo de carnaval na festa, inegavelmente. Carnavalizar parece ser uma palavra de ordem das festas baianas.

No final da procissão, as baianas lavam o adro e as escadarias da Igreja do Bonfim. E que nos entendamos: este ato, mesmo que alguns não percebam, é um ato religioso, é um rito dedicado ao Criador, do ponto de vista da religião negra, o candomblé.

E depois a festa segue, dia e noite afora.

É uma festa do povo da Bahia, uma extraordinária criação religiosa e cultural do nosso povo, uma fusão impressionante entre o sagrado e o profano, entre a religião e a festa que, na Bahia é duro de separar, quanto mais na Lavagem do Bonfim.

É interessante o que diz o nosso Ordep Serra: enquanto nas cerimônias da Igreja Católica o povo vai aos templos para purificar-se, na Lavagem do Bonfim o templo é purificado pelo povo, e curiosamente é purificado pelas sacerdotisas do candomblé.

Aqui, nessa Lavagem, poderíamos dizer, juntam-se fiéis de religiões diversas – há católicos e há adeptos do candomblé, por exemplo –, e, como se disse, são as sacerdotisas do candomblé que dão o tom da Lavagem.

Os fiéis católicos, como não têm padres por perto, tomam suas iniciativas, e são capazes de simultaneamente darem vivas a Oxalá ou ao Senhor do Bonfim, que durante muito tempo e até hoje se fundiram no imaginário popular, numa história que não vamos contar aqui por falta de espaço.

Ali, na lavagem do adro e das escadarias da Igreja do Bonfim, os fiéis de todos os rebanhos se acotovelam para receber um banho dos potes de água de cheiro das mães de santo.

Os fiéis saem banhados e limpos, quem sabe purificados para as farras de todo o ano, que não serão poucas. Especialmente para o grande carnaval, que está próximo.

Há quem acredite, erroneamente, que a Lavagem do Bonfim foi criada pelo povo dos terreiros.

Não, não foi.

Lavagem é herança de uma tradição portuguesa.

Em Portugal, era comum católicos fazerem promessas de lavar uma igreja em pagamento de graças solicitadas a um padroeiro, santo ou anjo.

Só que em terras coloniais, em nações dominadas pelo Estado português, muitas dessas lavagens, cada uma a seu modo, se carnavalizaram. E as autoridades religiosas católicas não gostaram disso.

No caso de Salvador, no século XIX, a Lavagem do Bonfim dava-se dentro do próprio templo, e naturalmente transformava-se num carnaval, pequeno carnaval, mas carnaval. E vai daí que logo depois da Abolição da Escravatura – e vamos anotar isso como importante –, em 1889, o arcebispo dom Luís Antonio de Sousa proibiu a Lavagem da Basílica do Bonfim.

O povo revoltou-se contra a proibição, só garantida com a intervenção policial.

Aí, então, há coisa de mais de 120 anos, é que a Lavagem passou a ser realizada no adro e escadarias da Igreja do Bonfim.

Registrei que a proibição se deu em 1889, logo depois da Abolição da Escravatura. Não custa acreditar que a proibição tenha a ver com isso. Aquela Lavagem podia transformar-se em coisa de negro, apenas uma cerimônia negra, talvez intensificada pela liberdade conquistada pelos negros. Mas essa é outra história, que pode ser contada noutra hora.

Acrescente-se que a Lavagem do Bonfim de há muito tempo conta também com a participação de todas as correntes políticas do Estado.

Aqui ou acolá surgem manifestações contrárias a essa participação, como se isso fosse uma deformação da festa.

A Lavagem do Bonfim é uma festa de todos.

Seria uma incoerência completa que os políticos não participassem dela.

É carnaval, é festa, é cerimônia religiosa e é uma espécie de grande assembléia popular de dia inteiro. Assembléia aberta. Sem portões. O único lugar que não se pode entrar é o interior do templo da Sagrada Colina, por determinação da Igreja Católica.

O político que é do candomblé vai, o que é católico vai, o que não acredita em nada vai, todos os baianos são acolhidos por esta assembléia, podendo inclusive ser criticado por ela.

Quem samba fica, quem não samba vai embora.

A Festa do Bonfim é de todos.

E é principalmente uma festa desse extraordinário povo da Bahia.
Fonte: http://www.emilianojose.com.br/index.cfm?event=Site.dspNoticiaDetalhe&noticia_id=256

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